artigos e ensaios - 1983 / Mariza Peirano

Etnocentrismo às avessas:

O conceito de "sociedade complexa

Desde que a Antropologia foi reconhecida como disciplina acadêmica no final do século passado, uma tendência marcante foi sempre a de associá-la ao estudo das sociedades ora chamadas de "primitivas", de "tribais", ou "simples". Durante muitas décadas, as sociedades modernas contemporâneas foram consideradas área de preocupação de outros ramos das Ciências Sociais, isto é, da Sociologia, Ciência Políitica ou História. A divisão de trabalho entre as diversas Ciências Sociais se realizava, portanto, a partir da definição de um objeto de estudo concreto, na qual se considerava que as sociedades "simples" deveriam ser objeto privilegiado da Antropologia. Em 1951, Evans-Pritchard definia o campo da Antopologia Social segundo esta perspectiva: a Antropologia Social seria o ramo dos estudos sociológicos que se devota primordialmente às sociedades primitivas.

Pode-se afirmar que somente nos anos sessenta se iniciou o processo de inclusão das "sociedades complexas" como objeto legítimo da Antropologia, processo este que teve como pano de fundo um sentimento de crise que tomou conta dos antropólogas da época. Anteriormente, nas décadas de 40 e 50, alguns estudos haviam abordado temas semelhantes aos que hoje se chamam de "antropologia das sociedades complexas" sob a designação de "estudos de comunidade", mas o termo "sociedade complexa" não era utilizado.

Este trabalho pretende explorar o significado e as conotações implíicitas em tal conceito, a partir do contexto em que foi gerado. Desta forma, pretende-se chamar a atenção para o fato de que os conceitos antropológicos ou sociológicos são, também, fenômenos sociais e culturais específicos, além de puramente "científicos". O título sugere uma reflexão sobre uma preocupação constante da Antropologia - a de se livrar de uma postura etnocêntrica - e adverte para o fato de que a utilização de conceitos modernos e progressistas ainda pode estar imbuída de conotações que tomam, em última instância, a "civilização ocidental" como ponto de referência. Neste caso específico, o etnocentrismo se confirura "às avessas", já que se desenvolve via "sociedades simples", com o resultado potencialmente desastroso de transformar a multiplicidade das sociedades históricas do mundo ocidental em uma única categoria - "sociedades complexas". Estes pontos ficarão esclarecidos no decorrer do trabalho.Leia na íntegra...