artigos e ensaios - 2018 / Mariza Peirano

Prefácio de "Os argonautas do Pacífico Ocidental"

Como a história da antropologia não é linear, mas espiralada, é frequente que autores e obras, em um momento bem sucedidos, sejam depois criticados, às vezes esquecidos, reabilitados; só alguns se tornam clássicos. Malinowski foi um deles.

Bronislaw Malinowski (1884–1942) foi o primeiro pesquisador a introduzir a pesquisa de campo prolongada como parte da investigação etnográfica com os então chamados “povos primitivos”, sociedades pouco conhecidas no ocidente – em seu caso, os habitantes do arquipélago de Trobriand, na Melanésia. Por essa inovação e pela relevância e desdobramentos dos resultados que produziu, esta é sem dúvida a pesquisa de campo mais reverenciada da história da antropologia. Em Argonautas do Pacífico Ocidental encontramos muitos dos fundamentos da antropologia como disciplina até hoje. Seu ideal (ou utopia) de atingir “o ponto de vista nativo”, ali enunciado pela primeira vez, trazia consigo a presunção revolucionária para a época de que sistemas nativos poderiam ser equivalentes aos ocidentais. Ao longo das décadas seguintes, Argonautas tornou-se leitura obrigatória para antropólogos e passou a influenciar também outras ciências humanas, como sociologia, linguística, psicologia e economia.

A ideia-chave de captar o ponto de vista nativo por meio da pesquisa de campo continua a definir a antropologia. Para Malinowski, o início da pesquisa era inevitavelmente repleto de “mistérios etnográficos”, cujo desvendamento só poderia ocorrer por meio de investigação minuciosa, intimidade e diálogo no lento processo de identificar o ponto de vista nativo.

O grande “mistério”, sobre o qual construiu o argumento do Argonautas, foi o evento que ele optou por manter em língua kiriwina: o Kula. Trata-se de um gigantesco e elaborado sistema ritual, em um conjunto de ilhas da Melanésia, em que se trocam colares e braceletes sem valor utilitário, desencadeado por parceiros definidos. A escolha por manter o termo nativo deveu-se ao lugar privilegiado que os trobriandeses concediam ao espetáculo do Kula, considerado superior ao comércio, à técnica da construção de canoas, às expedições marítimas para a troca – temas que também foram objeto de detalhada atenção por parte do autor. Longe de ser uma anomalia, um divertimento ou um capricho, o Kula era, segundo Malinowski, um novo tipo de fato etnográfico que poderia ter equivalentes em outros lugares.

Durante sua pesquisa de campo entre os trobriandeses, Malinowski reuniu um corpo de dados dificilmente replicado por outros antropólogos. No campo, aprendeu a falar a língua coloquial trobriandesa, vivendo por longos períodos em uma tenda na aldeia de Omarakana, o que lhe conferiu certa facilidade para tomar parte nos eventos locais. Ainda que inaudito para a época, isso não seria suficiente para lhe garantir uma reputação incomum. Publicado em 1922, Argonautas do Pacífico Ocidental foi a primeira de uma série de monografias que se seguiram até 1935, e que deu ao autor a relevância que tem hoje. No Argonautas, Malinowski estabeleceu os parâmetros da pesquisa etnográfica, que, por muito tempo, tornaram-se canônicos, fazendo dele “o Etnógrafo”, e de seu texto, o modelo para uma experiência acadêmica exitosa.

O Texto

O estilo de apresentação do Argonautas segue a máxima do autor: o relato etnográfico deve levantar problemas e revelar fatos novos “de uma maneira precisa, mas não insípida”. Assim, Malinowski conduz o leitor por um cenário cinematográfico, atraindo-o por meio de expressões como “Imagine-se o leitor…”; “Vamos imaginar que estamos navegando…”, e construindo a monografia como uma viagem pelo longo circuito do Kula, que conheceu em parte pessoalmente, e em parte através de relatos. A convivência prolongada com os trobriandeses lhe permitiu reavaliar teorias em voga sobre os “povos primitivos”, das quais discordava. Em pausas estratégicas no livro, Malinowski contrapôs a visão trobriandesa e as acadêmicas de então

Em relação à economia, por exemplo, Malinowski mostra os equívocos das teorias sobre o “homem econômico primitivo”, que o descreviam ora como indolente e independente, ora como racional e utilitário. Outra crença em voga era a de que os primitivos só eram capazes de formas rudimentares de comércio; que apenas a necessidade os impulsionava a fazer transações; e que entre eles predominavam modalidades de trabalho simples, não organizadas e não sistemáticas. Malinowski mostrou com seus dados que a vida entre os trobriandeses era regida por um sofisticado sistema de trocas, nem sempre utilitário, baseado no sentido de “dar e receber”, princípio que mais tarde Marcel Mauss definiria como fundamento do social

A magia, por sua vez, tema tradicionalmente caro aos antropólogos, estudado por Frazer e outros antes de Malinowski, foi entendida por ele “em conceitos trobriandeses”, em relação tanto às atividades rotineiras quanto à mitologia. Em vez de desenvolver uma teoria sua sobre a magia, ele buscou a “teoria dos nativos de Kiriwina sobre a magia”, chamada megwa entre os trobriandeses. Antecedendo atividades cujos resultados eram incertos, por meio de encantamentos e fórmulas verbais, ora pronunciados sobre os objetos, ora acompanhados por ritos de impregnação ou por ritos de transferência, o poder da magia residia na estreita relação com a mitologia, produzindo uma continuidade com a época dos ancestrais.

A contribuição de Malinowski para a linguística não foi menor; ele deu especial atenção à força das palavras. Sempre visando à fidelidade aos trobriandeses, o etnógrafo transcreve textos em língua kiriwina oferecendo traduções literais em inglês, acrescidas de comentários. O mérito do autor foi, mais uma vez, o de “seguir os nativos” e desfazer a ideia simplista de que a linguagem apenas duplica, em paralelo, a sequência de pensamentos. Por muito tempo criticado por sua visão pragmática da linguagem, seu modo de compreender a comunicação em seu contexto tornou-se, décadas depois, axiomático.

Provas da qualidade e abrangência do material trobriandês são as influências que Malinowski estimulou ao longo do século. Possivelmente, sem o impulso do Argonautas, não teria havido um “Ensaio sobre a dádiva”, de Marcel Mauss, ou A grande transformação não seria igual se Karl Polanyi não tivesse enfatizado a reciprocidade do Kula para sugerir como o sistema econômico se relaciona à organização social. Roman Jakobson certamente captou e colocou em prática as percepções que Malinowski descreveu sobre o lugar da linguagem entre os trobriandeses; Stanley Tambiah e Michael Silverstein reconheceram sem hesitação como o etnógrafo abriu portas para que se esclarecesse a eficácia das palavras. Impossível também imaginar os conhecidos ensaios sobre textos bíblicos que Edmund Leach publicou nos anos 1960 sem a influência direta das monografias trobriandesas.

A Teoria do Outro

Mas a relevância maior desta obra, no entanto, deve-se ao fato de ter formulado, com uma espantosa ousadia, e muito à frente de sua época, tendo passado despercebida por muito tempo, que a antropologia se renova em diálogo com as “teorias etnográficas”, isto é, as teorias dos nativos. Plenamente desenvolvida em Argonautas, e utilizada no livro Coral Gardens and their Magic, de 1935, essa formulação hibernou até recentemente entre os antropólogos. “Teorias etnográficas” indicam que, por possuírem consistência conceitual, nativos têm sua própria compreensão das áreas que distinguimos como linguagem, magia, economia. Uma “teoria etnográfica” é, portanto, a “teoria do outro”. Que os antropólogos contemporâneos a Malinowski estivessem mal preparados para aceitar essas teorias fica registrado na utilização indevida de expressões como “a teoria da magia de Malinowski”, ou “a teoria da linguagem de Malinowski”, quando se trata de teorias trobriandesas da magia e da linguagem, que Malinowski captou entre os nativos e nos fez conhecer.

Professor brilhante e carismático, seus seminários na London School of Economics partiam de dados obtidos em primeira mão, apresentados por quem tinha a autoridade de uma convivência de anos entre “primitivos”. Mas essa autoridade, à época, não bastava. Malinowski, em resposta às críticas que o acusavam de ser excessivamente empírico e diziam que sua abordagem etnográfica era “científica”, passou a defender, em 1926, o que batizou de “funcionalismo”. O funcionalismo pressupõe, diferente da prática anterior dos investigadores europeus de listar “maneiras e costumes” dos nativos, que a vida das pessoas forma um sistema. Por um lado, o funcionalismo representa um tributo ao aspecto não selvagem dos trobriandeses; por outro, sustenta a ideia de que diferentes instituições desempenham “funções” interdependentes dentro de um determinado modo de vida. (Para uma apreciação dos fundamentos da “escola funcionalista”, ver a Apresentação de Eunice Ribeiro Durham, p. 17.)

Diário e Cartas

Durante sua pesquisa de campo, Malinowski seguiu a própria recomendação de que o etnógrafo deveria escrever um diário íntimo. Ele havia lido A interpretação dos sonhos de Freud e decidiu, ele próprio, fazer sua autoanálise. Sua noiva na época, Elsie Masson, porém, considerou o diário subjetivo inverossímil: sem um interlocutor claro, era impossível impedir a afetação e evitar o exagero. Em 1967, 33 anos após a morte de Malinowski, a publicação de Diário no sentido estrito do termo causou um estrondo imediato no meio antropológico, que deu razão à ressalva feita pela noiva.

Ruía um ídolo? O arquetípico etnógrafo deveria ser imune às fraquezas humanas? Ou o diário simplesmente deixava claro que almejar a objetividade científica, sem levar em conta a subjetividade do etnógrafo e a concepção da etnografia como um gênero literário, não passava de fantasia?

A leitura do famoso diário pode desapontar muitos porque a maioria das anotações é telegráfica. Malinowski não escrevia regularmente e há grandes intervalos nos registros. Entradas típicas do diário contêm menções ao sono da noite anterior, às atividades do dia, à disposição física do pesquisador, a remédios, frustrações e irritações com nativos, viagens pelas ilhas, exercícios regulares de canoagem, dúvidas amorosas e há reiteradas e frequentes exortações ao trabalho. Muitas vezes, um dia inteiro se traduz em longas reflexões; outras, em apenas 2 linhas ou um parágrafo. A introdução de Raymond Firth à primeira edição do Diário foi cuidadosa, mas o embaraço foi explicitado poucos meses depois por Clifford Geertz no artigo “Under the mosquito net” (1967), publicado no The New York Review of Books, e depois contido por George Stocking Jr. no ano seguinte, em “Empathy and antipathy in the Heart of Darkness” (1968). Stocking Jr. buscou compreender em contexto a impaciência, a irritação, a hipocondria e sobretudo os devaneios sexuais e os termos depreciativos que tanto chocaram os leitores, observando que eram amiúde anotados nos momentos de frustração com o trabalho etnográfico.

Reanálises

A obra de Malinowski demonstra que rigor analítico e inconsistências etnográficas ou eventuais lapsos não são incompatíveis com a antropologia. Justamente por oferecer mais dados que aqueles meramente necessários para defender uma determinada interpretação, as monografias clássicas permitem novos olhares. As inúmeras reanálises do corpo etnográfico trobriandês que o sucederam não invalidam o material etnográfico; representam, sim, uma homenagem a Malinowski, revelando um trabalho de campo tão rico que permitiu que outros se debruçassem sobre seus dados e,sem distorcê-los ou negá-los, chegassem a interpretações que complementassem as originais. Entre os autores que analisaram os dados de Malinowski, estão nomes como Edmund Leach, Stanley Tambiah, J. P. S. Uberoi, Melford Spiro, Annette Weiner, Michael Young. É sabido que Leach manteve em Cambridge a prática de reunir grupos de alunos para reler as monografias trobriandesas, esperando deles – cientes dos efeitos dos anos 1920, do colonialismo e do racismo em sua experiência de campo – reanálises consistentes com os dados nelas oferecidos pelo autor.

Com Malinowski, teorias vigentes no mundo acadêmico foram questionadas por experiências de campo de fora do mundo ocidental. Abriu-se caminho para a antropologia assumir definitivamente a crítica ao senso comum, inclusive ao senso comum acadêmico. No último século, a etnografia passou por fases de crítica e de aprovação; hoje encontra-se estabilizada e reconhecida. No Argonautas, Malinowski faz uma breve comparação entre os colares e braceletes trobriandeses e as joias da coroa britânica, que, no contexto do livro, parece sugerir apenas uma estratégia para levar o leitor a perceber o significado dos objetos nativos. É minha convicção que essa singela equivalência indica a trilha simbólica que a antropologia construiu ao longo do tempo, ampliando seu domínio temático hoje ilimitado e indicando que etnografia não é simplesmente método, mas a própria teoria em ação na sua capacidade de questionamento. Cada etnografia amplia, interroga e modifica os conhecimentos até então vigentes, fazendo surgir novas e valiosas teorias etnográficas. Que os novos leitores do Argonautas aproveitem a inspiração.