artigos e ensaios - 1995 / Mariza Peirano

O poder da etnografia

O livro de Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti tem um mérito central: o de demonstrar que a boa antropologia não se faz com rótulos, hipóteses prematuras e classificações impostas, mas, sim, com sólida pesquisa de campo. Informada por clássicos da disciplina - Mauss e Simmel, de um lado, Malinowski, de outro - e dialogando com o já doyen dos estudos sobre carnaval no Brasil, Roberto DaMatta, Maria Laura descreve a sequência de eventos que antecede o desfile de 1992 da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel. O resultado é uma monografia que tanto preserva documentalmente as várias etapas vividas por aqueles que fazem o carnaval, quanto deixa emergir, com extrema fluência e naturalidade, a configuração do mundo do carnaval carioca. Esse mérito central - o de demonstrar na prática o poder da etnografia - está alicerçado em outras características não menos significativas da construção do livro, produzindo (ou rendendo, para usar uma expressão do carnaval) consequências específicas de análise.

O livro se abre com um enfrentamento explícito que estabelece o rumo das discussões temática e teórica. Na introdução o conceito de cultura popular é criticado pelos dilemas que impõe: de um lado, sua valorização como primitiva, comunal e pura; de outro, o fato de a sua autenticidade estar sempre ameaçada pela degradação que a modernidade traz. Esse confronto inicial vai se resolver, ao longo do livro, via os dados etnográficos. É a etnografia minuciosa que consegue equacionar empiricamente os problemas teóricos, indicando que um fenômeno de "cultura popular" como o carnaval sobrevive não apenas pela sua continuidade, mas se baseia em tensões, mediações, interação de grupos e heterogeneidades diversas (ressaltadas por Gilberto Velho na apresentação do livro) que não só não implicam perda de conteúdo social e cultural, mas, mais importante, tornam-se condições necessárias e fundantes de sua riqueza e sobrevivência históricas.

É com esse espírito que o enredo do livro focaliza logo a figura que, em princípio, mais ameaçaria a tradição: o carnavalesco, esse personagem recente e moderno que, com seus valores de mercantilização e profissionalismo, poderia contaminar a pureza do carnaval. O carnavalesco surge logo depois de uma introdução geral, que fornece dados históricos e as regras do desfile, trata do patrocínio do jogo do bicho e de seus financiadores, e antecipa a tensão central e estruturante do carnaval carioca (e, portanto, do livro) entre o histórico domínio do samba e a tendência contemporânea de valorizar os aspectos visuais do desfile. O leitor percebe, então, que está diante de um ritual urbano e moderno - ritual de uma cidade - que, observado e registrado hoje, revela seu vigor sociológico e histórico como eterno momento de construção do tempo e, portanto, de transição. A história do carnaval carioca (e, consequentemente, da recente "primazia do visual") refaz-se a cada ano e já traz as tensões das mudanças de amanhã - como sempre ocorreu, aliás. (É Paulinho da Viola quem, no carnaval de 1995, representando a velha-guarda dos compositores, reclama da "ditadura do carnavalesco"). Leia na íntegra...