artigos e ensaios - 1991 / Mariza Peirano

Os antropólogos e suas linhagens

Há algo curioso na antropologia: ao mesmo tempo em que se vangloria de ter uma das tradições mais sólidas entre as ciências sociais - na qual se reconhecem cronologicamente os mesmos autores "clássicos" quer se esteja no Brasil, nos Estados Unidos, na Índia ou na Inglaterra -, a disciplina abriga estilos bastante diferenciados, na medida em que fatores como contexto de pesquisa, orientação teórica, momento sócio-histórico e até personalidade do pesquisador e ethos dos pesquisados influenciam o resultado obtido. Essa característica, ao mesmo tempo que pode ser apropriada positivamente como um dos aspectos mais ricos e complexos da disciplina, por outro lado oferece o perigo de, não respeitado o equilíbrio sutil entre teoria e pesquisa, resvalar para una situação na qual existam tantas antropologias quanto antropólogos.

Esta talvez seja a fonte da situação problemática que a antropologia potencialmente oferece às demais ciências sociais e que Fábio Wanderley Reis apontou, em 1988, quando detectou uma certa inspiração "antropológica" nos trabalhos pouco sofisticados das ciências sociais brasileiras na atualidade. Privilegiando o "popular", o leitor tinha que suportar "longos depoimentos em estado bruto de mulheres da periferia urbana", uma descrição que serve como metáfora para muitos dos problemas que ocorrem também dentro da disciplina. Mais recentemente, o autor denunciou também um certo "conjunturalismo" e um "historicismo" como responsáveis pela ausência de uma maior e desejável sofisticação teórico-metodológica, resultando num estado de indigência analítica que teria se alastrado nas ciências sociais no Brasil.

As preocupações de Fábio Wanderley sao sérias e pertinentes e, para o antropólogo, preocupantes. Na medida em que, nos últimos tempos, tem crescido o prestígio e/ou visibilidade da antropologia no âmbito das ciências sociais no Brasil - prestígio e/ou visibilidade que ela estava longe de ter há vinte anos atrás - estabeleceu-se, no contexto da Anpocs, uma visão de que, enquanto a sociologia e a ciência política se sentem em crise, tudo vai bem com a antropologia ou com os antropólogos: o ensino é adequado, os alunos são bem formados teoricamente, a pesquisa de campo continua sendo característica da disciplina, cursos de graduação aprimoram a formação unindo pesquisa e ensino; em suma, a disciplina avança.Leia na íntegra...