artigos e ensaios - 1986 / Mariza Peirano

"Sem Lenço, sem Documento":

Reflexões sobre cidadania no Brasil

O antropólogo que decide fazer das sociedades modernas seu objeto de estudo enfrenta um desafio e corre um perigo. O desafio consiste em fazer com que a tradição antropológica, desenvolvida principalmente no estudo de sociedades tribais, não se perca nem seja abandonada como ultrapassada. Faz parte deste desafio, portanto, uma visão da perspectiva antropológica que ultrapasse os limites estreitos impostos pela definição de um objeto de estudo concreto. O perigo que o antropólogo corre é, ao contrário, o de reificar os procedimentos através dos quais estudou sociedades "primitivas" e aplicá-los indiscriminadamente às sociedades modernas. Criticados e ejeitados, os "estudos de comunidade" ainda esperam por uma alternativa.

Qualquer forma que tome, a alternativa deverá implicar no reconhecimento do que é específico ao objeto de estudo investigado; do que o torna sui-generis e do que o torna comparável e universal. Se houve um momento no desenvolvimento da antropologia em que era preciso advertir os etnólogos dos perigos do etnocentrismo, o momento atual parece indicar o oposto: o antropólogo que "estranha" a sua própria sociedade não deve se deixar levar por uma atitude simplista que considera as chamadas "sociedades complexas" como sociedades "simples", apenas complexificadas. Perder-se-ia, assim, o caráter histórico do fenômeno sociológico único que foi o aparecimento das sociedades nacionais modernas. O que os antropólogos chamam de "sociedades complexas" são, na maioria dos casos, nações-estados.

A possível contribuição da antropologia para o estudo de um tema que tem sido o objeto por excelência da sociologia e ciência política talvez seja o caráter comparativo, universalista e relativizador da sua perspectiva. Assim, por exemplo, o ponto de partida de Wanderley Guilherme dos Santos, de que "a igualdade de todos os seres humanos como pessoas morais só pode significar o direito igual de ser diferente" (W. G. Santos, 1981: 175), não se coloca para o antropólogo como um valor em relação à sociedade que estuda, mas, sim, como ponto de partida da sua antropologia. Isto significa que, para o antropólogo, são as sociedades que têm o direito igual de ser diferentes e seu ponto de partida serão sempre as categorias com que os membros de qualquer sociedade ordenam sua experiência, ou as teias de significado que elas formam.Leia na íntegra...