capítulos de livros - 2005 / Mariza Peirano

A antropologia no Brasil hoje

A antropologia feita no Brasil atualmente diferencia-se das vertentes dominantes, desenvolvidas em centros reconhecidos de produção intelectual, por fazer parte do conjunto de disciplinas chamado "ciências sociais". Este fato é pleno de conseqüências. Até os anos 1960, por antropologia entendia-se, de forma dominante, se não exclusiva, o estudo "canônico" de sociedades tribais, como era regra geral na época. Essa antropologia se situava no contexto mais amplo da arqueologia, antropologia física, paleontologia e, de forma especial, encontrava-se nos museus. A influência, quando não a origem, germânica tinha, até então, dominado a antropologia no Brasil, seja por ocasião das expedições do século XIX, seja por via de pesquisadores e professores universitários da primeira metade do século XX. A partir de 1960, época que corresponde à fundação dos programas de pós-graduação em antropologia, a disciplina passa a se conceber como genuína ciência social, caracterizando-se por estudos de grupos tribais, do contato interétnico e de populações rurais e urbanas. O compromisso com a sociedade brasileira nas dimensões social e política tem sido uma das marcas das ciências sociais no país.

Sociogênese. A década de 1930, no Brasil, foi marcada por uma consciência de país novo. Esse contexto levou à institucionalização das ciências sociais como parte do projeto de construção nacional. A idéia dominante era a de que a sociologia, então concebida em termos amplos, ajudaria a identificar alternativas para um futuro melhor para o país. Novos líderes políticos eram necessários, pois se acreditava que a falta de uma elite educada e conhecedora da realidade nacional impedia um desenvolvimento sociopolítico adequado. Direta ou indiretamente, essas as razões que impulsionaram a fundação de várias escolas e faculdades onde se ensinava sociologia. O projeto de educação nascia de uma motivação política forte no contexto de modernização acelerada. Assim, atualizava-se a tradição do iluminismo que gestou a sociologia na França, quando esta se institucionalizou no século XIX com a promessa de tornar a ciência disponível para o aprimoramento da vida social. É de projeto similar que, no Brasil, surge a ambição de analisar, compreender e transformar a sociedade  um empreendimento social explicitamente comprometido.

A distinção entre antropologia e sociologia. Nas décadas de 1950 e 1960, quando a sociologia já havia se estabelecido como disciplina hegemônica entre as ciências sociais, os antropólogos tornaram-se alvo de críticas dos sociólogos por sua falta de rigor teórico. A tentativa de configurar uma antropologia nos padrões tradicionais, mas que, ao mesmo tempo, refletisse as conquistas da sociologia recém-consolidada, fez surgir o conceito de "fricção interétnica". Foi necessário um processo de cissiparidade para que da sociologia surgisse uma antropologia com a marca feita-no-Brasil, tornando as duas disciplinas interlocutoras privilegiadas desde então.

Florestan Fernandes. O caminho é representado pela trajetória de Florestan Fernandes (1922-1995). Formado por professores franceses que vieram ensinar sociologia no Brasil nos anos 1930, Florestan desempenhou papel fundamental na instauração de um ethos acadêmico, defendendo padrões de excelência para as ciências sociais. Com a ambição de instituir uma sociologia, não propriamente nacional, mas feita-no-Brasil, iniciou sua carreira reconstruindo a organização social dos índios Tupinambá a partir de fontes seiscentistas, portuguesas e alemãs, de viajantes, jesuítas e naturalistas. O trabalho de análise histórico-etnográfica que Florestan Fernandes empreendeu era tarefa considerada até então impossível por pesquisadores estrangeiros (como Alfred Métraux, por exemplo). A partir dessa monumental realização, Florestan Fernandes alcançou tamanha legitimidade que lhe permitiu formar um grupo de pesquisadores que passou a ser conhecido, nos anos 1960, como uma escola de pensamento sociológico. Leia na ìntegra...